Perfil e percurso de Ricardo Sá Pinto, hoje traçado no JOGO:
Franzino e cheio de garra, Ricardo Sá Pinto nunca deixou de ser fiel a si mesmo, e a pronúncia de quem nunca soube lidar com o insucesso ouviu-se bem alto, quando ele entrou no Campo da Constituição pela primeira vez, aos 11 anos. O principal emblema da cidade que o viu nascer, o Porto, era tema de conversa recorrente na sua casa, na Rua Camões, desde tenra idade, fruto em boa parte da preponderância do pai, Manuel de Sá Pinto, guarda-redes de andebol que foi deixando marca de azul vestido, daí que a paixão pelo futebol o tenha levado para o destino mais apetecível. Jogar no FC Porto passou então a ser objetivo, autorizado por Leopoldo Amorim, antigo lateral-esquerdo do clube, agora com 63 anos, mas à época treinador que lhe deu os primeiros ensinamentos do que era sentir uma camisola, antes de recomendar a integração de Sá Pinto - a par de Renato, Nélson, Albertino e Leão - nos juvenis. O parecer, contudo, ficou apenas no papel e a dispensa foi consumada. Seguiu-se o Salgueiros, onde foi acolhido por Filipe Petrónio. Mas o ADN já tinha o essencial, como recordou, a O JOGO, Leopoldo Amorim: "
Que grande aversão à derrota ele tinha. Sempre teve e mantém-na. Agora vai regressar à casa que o educou."
E essa forma de aversão, inflamada por competir com a paixão herdada, acompanhou-o como jogador profissional e agora nota-se como treinador, vinca Leopoldo Amorim.
"Já nessa altura vivia muito o jogo. Foi sempre uma pessoa de extremos a competir, com muita paixão, humildade, trabalho, entrega e garra. Muito determinado, sabia jogar mesmo quando as coisas corriam mal. Lutava sempre contra as adversidades, nunca virava a cara e se as coisas estavam a fugir, agarrava-se à vontade de vencer. Não suporta a derrota. Quando era pequeno, chorava; agora deve ser certamente diferente, mas a aversão à derrota mantém-se", relembra.
As dúvidas sobre o homem que estava a perspetivar-se nunca estiveram na mente de quem acompanhava a sua formação, pois
Ricardo Sá Pinto "era um líder de grandes qualidades humanas", transmitindo valores desejados muito para além da competição. "Esses aspetos estão dentro dele, sempre estiveram, e ele faz questão de os transmitir. Liderava. Não era uma forma de se impor por impor, era tudo muito natural. Incutia esse espírito de vitória e luta aos colegas, sabia como fazê-lo. Gostava que as coisas corressem sempre bem. Não era fácil encontrar esse estado de alma, essa entrega, durante treinos e jogos, noutros jogadores", sustenta.
O antigo treinador dos iniciados dos azuis e brancos, hoje homem que preferiu a certeza da restauração à "ingratidão e desilusão" que o futebol contém, vê esses valores no leão atual. "A mudança que se viu no Sporting foi de atitude. Os jogadores têm outra disposição, lutam e estão mais aguerridos em campo.
É a imagem que ele tinha na altura: de um lutador nato, até à exaustão, e ele soube transmitir isso", frisa.
O nível de exigência que Ricardo Sá Pinto tem consigo mesmo vem de tenra idade, como recorda Leopoldo Amorim. E as falhas davam em choro, quando tinha 12 anos. "
Um dia, num jogo no Campo da Constituição, não me lembro contra quem, teve uma oportunidade de golo... e falhou. Teve a segunda... e falhou outra vez. Então, revoltado, saiu disparado para o banco dos suplentes a chorar. Claro que não o substituí. Mantive-o em campo, e ele continuou a jogar depois de eu lhe ter dado alento", recorda.
Ciente das condições económicas de que beneficiava face a colegas de equipa mais necessitados, Ricardo Sá Pinto teve um gesto nunca esquecido por Leopoldo Amorim. "Estava a chover muito, tínhamos acabado de sair do treino. Sá Pinto estava com um colega que vivia num bairro degradado da cidade e não tinha casaco nem chapéu de chuva; ia a pé para casa, imagine-se.
Sá Pinto virou-se para ele e disse: 'Levas o meu casaco e chapéu de chuva, que eu moro perto. Estás sem abrigo.' A atitude tocou-nos, e acabei por ser eu a levar Sá Pinto para casa."
Sentimentos de injustiça pouco agradam a Sá Pinto, como revela Leopoldo Amorim, e em tempos valeram vidros partidos. "O FC Porto ia jogar num torneio em Marselha. Pedi ao preparador-físico para colocar a convocatória no balneário para os miúdos verem.
Quando Sá Pinto viu que tinha sido chamado, sabe qual foi a reação? Atirou com a bota contra o espelho do balneário e partiu-o", conta, acrescentando: "
Confrontei-o, perguntei o porquê daquilo. Respondeu-me a dizer que não merecia ir a Marselha. Levei-o à mesma e chamei o pai para pagar o vidro partido."
O altruísmo de Sá Pinto veio do berço e não mais o largou até se tornar um traço do seu carácter. Já adolescente, no Salgueiros, Ricardo continuava a amparar os colegas no que podia.
Oriundo de uma família portuense de classe média/alta, não podia ver faltar algo entre os colegas da bola... a começar pelo calçado, como recorda Filipe Patrocínio, antigo treinador em Paranhos. "Lembro-me de o Sá andar pedir ao pai para comprar chuteiras novas e assim ajudar os colegas a poderem jogar."
Desportivamente nado e criado nos corredores das Antas, não só pela sua atividade como jovem praticante de futebol, mas também pela tal herança que o seu pai, Manuel, lhe deixou, o jovem Ricardo jamais perdeu o respeito às suas cores originais quando as passou a ter como adversárias. Vontade nunca lhe faltou para encarar os portistas, mas cedo viu travado o ímpeto de se querer mostrar por uma questão de respeito pelo passado, um valor que também lhe foi inculcado no Salgueiros. O princípio mantém-se inalterado e, por isso,
Sá Pinto irá amanhã com o seu Sporting ao Dragão com a sede de vitória de sempre, com vontade de descolorir a festa alheia, mas sempre com respeito. Outrora treinador na formação do emblema de Paranhos, Filipe Petrónio, sportinguista de coração, espera ver a equipa de Sá Pinto ganhar o clássico... ao estilo que lhe ensinou: "Claro que quero que ele estrague a festa ao FC Porto, mas dentro do respeito e dos valores desportivos que aprendeu. Aliás, estaremos juntos na véspera do jogo no hotel, onde lhe irei desejar boa sorte."
Filipe Petrónio lembra-se bem da legião de jogadores oriundos do FC Porto que entraram em Paranhos. Eram todos da mesma fornada e fizeram carreiras lustrosas. "Quando o Ricardo veio do FC Porto, com ele vieram também os gémeos Nélson e Albertino, além de Leão e do Renato. Curiosamente, destes só mesmo Albertino é que acabou por não jogar no Sporting", recorda o homem que durante 25 anos foi técnico da formação do extinto Sport Comércio e Salgueiros, que nunca se esquecia de dar uma palavrinha especial a um "miúdo irreverente" sempre que chegava a hora de enfrentar os azuis e brancos. "Lembro-me de andar pelo balneário e puxá-lo para o lado e explicar-lhe para ter calma, que aquele era só mais um jogo. Ele percebeu sempre tudo muito bem e ia lá para dentro jogar como devia, sem se deixar levar por outros sentimentos. Aliás, as pessoas dizem muita coisa, mas posso garantir que
o Ricardo foi dos miúdos mais bem-educados com que tive o prazer de trabalhar", frisa Filipe Petrónio.
A entrada de Ricardo Sá Pinto no mundo do futebol, dando seguimento à paixão pela bola, foi como a de tantos outros jovens. Com o FC Porto como clube mais próximo de casa, onde o pai tinha sido referência, o miúdo chamou a atenção nos habituais treinos de captação que se realizam no início de cada época. Nessa oportunidade, entre tanta ambição escondida no pequeno físico, foi agarrado pelo treinador de infantis, então Francisco Carneiro.
A qualidade técnica e entrega nos treinos cativou. Mais tarde foi Leopoldo Amorim o responsável pelos dois anos no escalão de iniciados, antes da dispensa.
Costuma ser sempre assim na hora da rejeição em tenra idade: há uma necessidade extrema de provar que quem não quis estava enganado. Assim chegou Ricardo Sá Pinto a Paranhos ao terminar o escalão de iniciados no FC Porto, do qual fora dispensado por ser mais baixo do que a maior parte dos elementos do imberbe grupo azul e branco. Na "sobra", Filipe Petrónio, então treinador na área de formação do Salgueiros, recebeu o avançado e fez das suas fraquezas forças que o afirmaram no plano regional, mais tarde fortalecidas nacional e internacionalmente. "Tinha visto o Ricardo jogar pelo Porto e sabia que tinha condições fantásticas como avançado. Ele veio para o Salgueiros por ser pequenino, mas deu-nos muito jeito no meio daqueles defesas matulões.
Sacava muitos penáltis", conta o ex-técnico a O JOGO. Não espantou que, pouco depois, os jornais locais escrevessem que era preciso fixar o nome daquele atacante...
Nuno M Almeida